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MODERNISMO BRASILEIRO – A FASE HEROICA

MODERNISMO BRASILEIRO – A FASE HEROICA

A década de 1920 é um período particularmente agitado na história mundial e brasileira.

MOMENTO HISTÓRICO

Um mês após a realização da Semana de Arte Moderna, o Brasil escolhia o sucessor do Presidente da República, Epitácio Pessoa, em plena crise econômica e contrariando a tradicional disputa São Paulo x Minas. As oligarquias do café com leite têm candidato único, Arthur Bernardes, que venceria as eleições contra o representante das oligarquias de Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, Nilo Peçanha.

O resultado da briga política, motivada mais por interesses e vaidades pessoais que por projetos diferentes de governo, é a ampliação do descontentamento da classe média, da qual faziam parte jovens oficiais das forças armadas. Foram esses militares que tentaram impedir a posse de Bernardes exigindo mudanças imediatas. A revolta tem como palco o Forte de Copacabana e seu trágico desfecho dá-se em uma caminhada fatal em que 17 militares mais um civil vão de encontro aos três mil soldados das forças governistas e são massacrados diante da bela paisagem carioca. Os Dezoito do Forte, como ficou conhecido o movimento, entrou para a história como um sacrifício por um ideal, um símbolo de luta e resistência.

O governo de Bernardes não é em nada tranquilo: censura à imprensa, intervenções nos estados e períodos de estado de sítio são uma constante. Ainda assim, o espírito revolucionário não se cala e dois anos após os acontecimentos em Copacabana, é São Paulo o palco de nova batalha. O movimento dos tenentes exige maior representatividade política, fim da corrupção e voto secreto. Após um mês, os revoltosos retiram-se rumo ao interior, juntando-se com tropas gaúchas comandadas por Luís Carlos Prestes, na formação do que ficou conhecido como a Coluna Prestes. A marcha enfrentou tropas do exército, grupamentos regionais, jagunços e até cangaceiros de Lampião; contudo, em uma terra dominada pelo latifúndio, não foi capaz de sensibilizar a população para a tão almejada revolução.

Em 1922, ainda sob o impacto causado pela revolução bolchevique e a criação da U.R.S.S., funda-se no Brasil o Partido Comunista Brasileiro (PCB) organizando e aglutinando trabalhadores e operários, contando com vários nomes advindos das lutas anarquistas. Em 1926, o Partido Democrático surge no cenário paulistano oriundo da pequena burguesia e tendo como um de seus fundadores, Mário de Andrade.

No plano econômico, a crise de 1929 é um duro golpe contra as famílias paulistanas, especialmente os outrora ricos comerciantes de café. A queda dos números de exportação do produto – base da economia nacional – levou fazendeiros à falência e até mesmo à queima dos estoques de grão no país. O momento de fraqueza de São Paulo repercute na disputa presidencial e abre caminho para que Getúlio Vargas assuma o poder e mude radicalmente o país, deslocando o poder das oligarquias agrárias e criando um novo modelo de desenvolvimento.

ORGIA INTELECTUAL: MANIFESTOS E REVISTAS

O turbilhão social, econômico e político pelo qual passava o país era retratado na arte moderna. Após a Semana de 22 coube aos artistas modernos a tarefa de anunciar que projeto estético pretendiam divulgar. Essa fase, chamada por alguns de heroica, é uma fase de afirmação, sem, contudo, alcançar unidade entre as diversas correntes e manifestações que surgem.

No entanto, podem-se apontar algumas características comuns aos modernistas destas diferentes linhas de atuação, como o rompimento com as estruturas do passado, numa perspectiva destruidora e anárquica; ou como na reconstrução da cultura brasileira sobre bases nacionais, definidas como uma linha construtiva.

A mistura entre o moderno e o passado também é uma constante: o olhar atual é lançado ao passado em busca de uma revisão crítica de nossa história, com a eliminação de nosso complexo subalterno, colonizado, apegados unicamente a valores estrangeiros. É a defesa da volta às origens, de uma visão nacionalista, valorizando o índio verdadeiramente brasileiro, buscando construir uma língua brasileira, próxima àquela falada nas ruas.

O humor e a ironia fazem-se presentes como elementos da modernidade, surgindo diversas paródias de textos quinhentistas, recriando a visão do país sobre si mesmo. É o tempo de propostas, manifestos, revistas e publicações que buscavam nortear a nova estética brasileira, investigando profundamente nossas raízes culturais, radicalizando conteúdos e formas para implementar definitivamente os conceitos de arte moderna e dar autonomia e maturidade à nossa literatura.

Quatro movimentos chamam a atenção e merecem destaque na época: A Poesia Pau-Brasil, a Antropofagia, o Verde amarelismo e a Escola da Anta. Entre as revistas, destaques para as publicações Klaxon, A Revista, Estética, Terra Roxa e Outras Terras, além do manifesto regionalista de 1926.

Poesia Pau-Brasil

Lançado por Oswald de Andrade em 1924, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil propunha a criação de uma poesia nacional de exportação, extremamente vinculada à realidade brasileira, redescobrindo, de forma irreverente, o próprio Brasil. A veia irônica e sarcástica também se manifesta para revoltar-se contra a dominação cultural europeia, valorizando os contrastes culturais nacionais, voltado às origens, acentuando uma poesia primitivista. Veja as características do movimento apresentadas pelo próprio Oswald, nos fragmentos do manifesto aqui reproduzidos:

“A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.
(…)
A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.
(…)
A poesia Pau-Brasil. Ágil e cândida. Como uma criança.
(…)
A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.
(…)
Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano.
(…)
A síntese
O equilíbrio
(…)
A invenção
A surpresa
Uma nova perspectiva
Uma nova escala.
(…)
Uma nova perspectiva.
Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.

(OSWALD DE ANDRADE)
(Correio da Manhã, 18 de março de 1924.)

Note a sistematização das rupturas: valorizar o erro da linguagem, poetizar os fatos, crítica ao formalismo parnasiano e à proposta revolucionária de expressão do mundo: ver com olhos livres. Isso significa a libertação de nossas amarras, a possibilidade de assumir tudo o que somos, abandonar os olhos do colonizador, como uma criança que vê pela primeira vez, ágil e cândida.

Verde-Amarelismo e Escola da Anta

O grupo – formado por Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo – surge como resposta à proposta Pau-Brasil de Oswald, considerada um “nacionalismo afrancesado”. Assim, o movimento introduz a concepção de um nacionalismo primitivista, ufanista, que se identificava com o fascismo (o que se tornaria evidente após o ingresso de Plínio Salgado no movimento Integralista). O índio tupi e a anta são alçados a símbolos do nacionalismo primitivista, numa idolatria que acaba por transformar o nome do próprio movimento em Escola da Anta. Abaixo, um trecho do manifesto publicado em 1929, “Nhengaçu Verde-amarelo – Manifesto do Verde-amarelismo ou da Escola da Anta”:

“O grupo “verdamarelo”, cuja regra é a liberdade plena de cada um ser brasileiro como quiser e puder; cuja condição é cada um interpretar o seu país e o seu povo através de si mesmo, da própria determinação instintiva; o grupo “verdamarelo”, à tirania das sistematizações ideológicas, responde com a sua alforria e a amplitude sem obstáculo de sua ação brasileira. (…)

Aceitamos todas as instituições conservadoras, pois é dentro delas mesmo que faremos a inevitável renovação do Brasil, como o fez, através de quatro séculos, a alma da nossa gente, através de todas as expressões históricas.

Nosso nacionalismo é “verdamarelo” e tupi. (…)”

Antropofagia

O contra-ataque de Oswald ao primitivismo xenófobo da Anta veio com a publicação do Manifesto Antropófago, lançando o movimento mais radical da época. Nele, Oswald de Andrade, Raul Bopp e Tarsila do Amaral acentuavam um primitivismo crítico e propunham a deglutição da cultura estrangeira.

A ideia surgiu de um quadro de Tarsila, oferecido como presente de aniversário para Oswald, que rapidamente, junto com o amigo Raul Bopp, batizou-o Abaporu, que, em tupi, significa antropófago. Para veicular os novos conceitos foi criada a Revista de Antropofagia.

Os antropófagos baseavam-se na cultura indígena primitiva de que quando se devora um inimigo assimilam-se suas qualidades; desta forma, não se negava a cultura estrangeira, tampouco havia dela cópia ou imitação: a proposta era a devoração simbólica da cultura estrangeira, aproveitando as inovações artísticas sem a perda da identidade cultural brasileira. Abaixo, um trecho do manifesto:

“Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi, or not tupi that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.

(…)

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil.

(…)

Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará.

Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós.

(…)

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.

(…)

Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.

Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.

A alegria é a prova dos nove.

(…)

Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.

OSWALD DE ANDRADE
Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.”
(Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928.)

DOIS ANDRADES E UM BANDEIRA

Os principais nomes do período pós-Semana de 22 são os de Oswald de Andrade e Mário de Andrade. O primeiro por sua concepção destruidora e revolucionária, o segundo pelo estudo e aprofundamento que faz do folclore. Além desses, destaca-se, na poesia, Manuel Bandeira, desde a Semana de Arte Moderna um dos pilares de construção da nova estética.

Oswald de Andrade

O mais revolucionário dos modernistas brasileiros nasceu em 1890, na cidade de São Paulo. De família rica, Oswald viajou várias vezes à Europa, estando em contato com artistas das mais variadas vanguardas. Trouxe ao Brasil as ideias do Futurismo e tornou-se figura principal dos acontecimentos culturais nas décadas iniciais no Brasil. Formado em Direito, ingressou no jornalismo, mas viu na literatura o caminho para seu verdadeiro potencial.

Polêmico, gozador, irônico, crítico e debochado são algumas das qualidades que o definiram. Sua vida atribulada não se resumiu às artes: teve inúmeros casos amorosos e vários casamentos. A crise de 1929 abala-o financeiramente e em 1930 casa-se com a escritora comunista Patrícia Galvão (Pagu). Passa então a militar nos meios operários, ingressando no PCB. Esse período marca suas obras “ideológicas”: Manifesto Antropófago, Serafim Ponte Grande e O rei da vela.

O nacionalismo pregado por Oswald diferenciava-se de outros modelos. Negava a ingenuidade e o ufanismo, valorizando as origens brasileiras, seu passado histórico e sua cultura sempre de maneira crítica. Assim recupera, parodia, ironiza e atualiza a colonização, apontando as contradições entre o moderno e o primitivo que convivem no Brasil. Na linguagem, valoriza a expressão cotidiana, buscando a língua brasileira: “como falamos, como somos”, em que se incorporam os erros gramaticais como contribuição ao idioma e à definição da própria nacionalidade.

Pelo aspecto formal, sua produção é bastante inovadora: criou o “poema-pílula” (ou poema-minuto) de forte apelo visual, uma técnica de poemas curtíssimos. A quebra de relações sintáticas e lógicas também é marca do autor, que se utiliza frequentemente de imagens bruscas e fragmentações. Nos romances, essa ruptura dá-se de maneira a apresentar capítulos curtos e semi-independentes, misturando poesia e prosa, para formar um grande painel.

Brasil

O Zé Pereira chegou de caravela
E perguntou pro guarani da mata virgem
— Sois cristão?
— Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teterê Tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
— Sim pela graça de Deus
Canhém Babá Canhém Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval

Amor

humor

Erro de português

Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena! Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português

33. Veleiro

A tarde tardava, estendia-se nas cadeiras, ocultava-se no tombadilho quieto, cucava té uma escala de piano acordar o navio.

Madame Rocambola mulatava um maxixe no dancing do mar.

Esquecia-me olhando o céu e a estrela diurna que vinha me contar salgada do banho como estudara num colégio interno. Recordava-me dos noivados dormitórios de primas.

Uma tarde beijei-a na língua

66. Botafogo etc.

Beiramarávamos em auto pelo espelho de aluguel arborizado das avenidas marinhas sem sol. Losangos tênues de ouro bandeira nacionalizavam o verde dos montes interiores. No outro lado da baía a serra dos Órgãos serrava. Barcos. E o passado voltava na brisa de baforadas gostosas. Rolah ia vinha derrapava entrava em túneis. Copacabana era um veludo arrepiado na luminosa noite varada pelas frestas da cidade.

Mário de Andrade

Mário Raul de Morais Andrade nasceu na rua Aurora, São Paulo, em 1893. Estudou música no Conservatório Musical de São Paulo, mas desistiu da carreira de concertista quando suas mãos tornaram-se trêmulas devido ao trauma da perda de seu irmão de 14 anos por complicações decorrentes de uma cabeçada em um jogo de futebol.

Sob o pseudônimo de Mario Sobral, influenciado ainda pelas escolas literárias anteriores, com poucas inovações formais, publica seu primeiro livro, Há uma gota de sangue em cada poema, com apenas vinte anos de idade. Ainda assim, os críticos parnasianos desagradaram-se com a obra.

Mário de Andrade é o grande teórico do Modernismo: homem de cultura, pesquisador contumaz, sustentou intelectualmente o movimento em momentos decisivos. Em Pauliceia desvairada rompe de vez com as estruturas do passado, analisando a cidade de São Paulo e sua gente: burgueses, aristocratas, proletariado, enfim, uma verdadeira colcha de retalhos, multifacetada, a quem Mário definiu como “arlequinal”. Para provar que estava livre de influências, dedica seu livro a seu Guia, ele mesmo.

Contudo, é no prefácio desta obra que reside o manifesto teórico do Modernismo: o Prefácio Interessantíssimo. Nele, lança as bases da nova estética, fala sobre o lirismo, funda o desvairismo, defende a língua coloquial, a fluência criativa, explica métricas e cria a polifonia poética. Os brasileirismos e o folclore são de fundamental importância para o poeta, além de tecer duras críticas sociais contra a alta burguesia e contra a aristocracia.

Sereno e equilibrado, soube colher os frutos da destruição futurista, conciliando conquistas modernistas com lições do passado. Rever o passado, sem negá-lo radicalmente, fez do autor referência de crítica literária, mostrando a face construtiva do Modernismo. Empreendeu diversas viagens pelo interior do país, pesquisando e recolhendo materiais culturais: poemas, canções, ritmos, festas religiosas, lendas, objetos de arte, tornando-se, assim, um dos primeiros folcloristas nacionais. Todos esses esforços eram a própria missão de Mário: ajudar a reconstrução do Brasil e sua transformação social, política, econômica e cultural.

Várias de suas obras revelam o olhar para dentro do país e de sua cultura: Clã do jabuti e Remate de males são exemplos dessa fase. Em Amar, verbo intransitivo, critica a estrutura familiar da burguesia paulistana, sua moral e seus preconceitos, ao abordar a história de um adolescente iniciado nos prazeres do sexo pela governanta alemã, contratada por seu pai exatamente para esse “serviço”.

O expoente de sua criação é o romance Macunaíma, seguramente a mais importante obra da primeira fase do Modernismo brasileiro. A partir do anti-herói que dá nome ao livro, sedimenta o projeto nacionalista de sua geração, produto de suas pesquisas, e mostra o perfil do brasileiro e de sua miscigenação.

A partir de uma mistura entre lendas indígenas, anedotas brasileiras, aspectos da vida urbana e rural do Brasil, mescla entre personagens reais e fictícios, elementos de feitiçaria, erotismo e nonsense, Mário cria Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter”, síntese de nossa gente: o índio amazônico que nasceu negro e virou branco. Suas “desqualidades” definem o próprio povo brasileiro: preguiçoso, mentiroso, covarde etc.

A língua do romance também surge como uma verdadeira babel: vocábulos indígenas e africanos convivem com expressões e provérbios populares, gírias e frases feitas, construindo uma tela antropofágica da cultura nacional.

MACUNAÍMA

1º Capítulo

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:

– Ai! que preguiça!…

E não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no girau de paziúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaimuns diz-que habitando a água-doce por lá. No mucambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos e frequentava com aplicação a murúa a poracê o torê o bacororô a cacuicogue, todas essas dansas religiosas da tribu.

Quando era pra dormir trepava no camurú pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.

Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto era sempre as peraltagens do herói. As mulheres se riam muito simpatizadas, falando que “espinho que pinica, de pequeno já traz ponta”, e numa pagelança Rei Nagô fez um discurso e avisou que o herói era inteligente.

Manuel Bandeira

Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho nasceu em Recife em 1886, fez seus estudos secundários no Rio de Janeiro e inicia o curso de Arquitetura em São Paulo, mas abandona-o devido a estar com tuberculose. A partir de então, busca as melhores clínicas e cidades do Brasil e da Europa para tratar-se, sempre desenganado pelos médicos.

Manuel Bandeira descobre-se poeta no leito de sua doença, distante da vida agitada de outros jovens. Para agravar as tragédias em sua vida, em 1916, perde sua mãe; em 1918, falece sua irmã; em 1920, seu pai é quem vem a morrer. Sua poesia é influenciada por todos esses acontecimentos, trazendo temas como a morte, o amor e o erotismo, a paixão pela vida, a solidão, a angústia existencial e o cotidiano. Estampou em seus versos vários tipos populares, sua fala e suas desgraças. Usando um humor cético e irônico, idealizou um mundo melhor. É frequente também o tema da infância como forma de escapar dos problemas e voltar a uma época de felicidade.

Sua participação na Semana de 22 foi apenas enviar o poema “Os sapos”, acompanhando de longe o movimento. Sua adesão à estética modernista é gradual, em necessidade da renovação de sua própria poesia, ajustando-a às novas formas de expressão. Foi, sem dúvida, o maior mestre do verso livre de sua época e colaborou intensamente para solidificar a poesia modernista.

Apesar de, por vezes, aproximar-se de uma temática romântica, dela se distancia por não criar idealizações sentimentalistas, mas de retratá-las de forma vivida, concreta e até mesmo crítica. É o passado que colocado ao lado de seu presente acentua-lhe a condição trágica; a solidão, que levava os ultrarromânticos a buscar a morte como solução, leva Bandeira a cada vez mais apaixonar-se pela vida. Lutava cotidianamente contra a morte anunciada e vivia cada dia intensamente por pensar sê-lo o último. Apesar de todos os prognósticos médicos, viveu até os 82 anos, deixando a poesia como testemunho de sua vida.

Evocação de Recife

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois —
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as
[vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta
[do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras,
[mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai

A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão…)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo
Rua da União…
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade…
…onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora…
…onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho
[sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos
[em jangadas de bananeiras
Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos
[meus cabelos
Capiberibe
— Capibaribe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era
[cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo…
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife…
Rua da União…
A casa de meu avô…
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife…
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de
meu avô.

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